LES Juvenil

Lupus Eritematoso Sistémico Juvenil
 
 
O Lupus Eritematoso Sistémico (LES) é uma doença crónica imunomediada, caracterizada por uma desregulação imune, com formação de auto-anticorpos. Estes  anticorpos identificam células normais do indivíduo como elementos estranhos, eliminando-as, o que resulta em inflamação e lesão potencial de vários órgãos.
 
O LES com início em idade pediátrica é uma doença rara, com poucos dados de prevalência que variam de acordo com a localização geográfica e diferenças raciais. No entanto estima-se que globalmente o LES afete cerca de 50-100/100 000 indivíduos e que a forma juvenil, que se inicia durante a infância e adolescência, conte com 15-20% do total de casos. 
 
O início do LES antes dos 5 anos de idade é raro e antes da adolescência é pouco comum. As mulheres em idade fértil (dos 15 aos 45) são as que com maior frequência são afectadas e, nesse grupo etário em particular, a proporção de mulheres afectadas em relação aos homens é de 9:1. Nas crianças mais novas, antes da puberdade, a proporção de rapazes afectados é superior. O LES é reconhecido em todo o mundo, sendo aparentemente mais comum em crianças de origem afro-americana, latina, asiática e índia.
 
A sua causa exacta é desconhecida, devendo-se provavelmente a múltiplos factores hereditários, em combinação com factores ambientais aleatórios. Sabe-se que o LES pode ser desencadeado por uma série de factores, inclusivamente por desequilíbrio hormonal na puberdade e factores ambientais como a exposição solar, algumas infecções virais e determinados medicamentos. A combinação de alguns destes fatores conduz a perturbações do nosso sistema imunitário que perde a sua capacidade de distinguir entre um corpo estranho e os tecidos e células da própria pessoa. O sistema imunitário erra e produz auto-anticorpos que identificam as células normais da pessoa como corpos estranhos, eliminando-as de seguida. O resultado é uma reacção auto-imune que provoca inflamação dos tecidos e órgãos específicos (articulações, rins, pele, etc.).
 
Como se manifesta?
 
Em geral, a doença costuma ter um começo lento, com novos sintomas que aparecem durante um período de várias semanas ou meses. Nas crianças, os sintomas iniciais mais comuns de LES são queixas inespecíficas de fadiga e mal-estar. Muitas crianças com LES têm febre intermitente ou contínua, perdem peso e não têm apetite. 
Com o tempo, podem apresentar sintomas específicos causados pelo envolvimento de um ou mais órgãos. 
O envolvimento da pele e mucosas é muito comum e pode incluir uma variedade de lesões com aspectos diferentes, fotossensibilidade (quando a exposição à luz do sol desencadeia manchas vermelhas na pele) e úlceras – do tipo aftas - no interior do nariz e da boca. A típica erupção cutânea em «borboleta» no nariz e nas maçãs do rosto ocorre apenas em 1/3 a 1/5 das crianças afectadas. Por vezes, cai mais cabelo do que o normal (alopecia) ou as mãos ficam vermelhas, azuis e depois brancas quando expostas ao frio (fenómeno de Raynaud). 
 
Os sinais e sintomas podem ainda incluir tumefação, dor e rigidez articular, dores musculares, anemia, facilidade no aparecimento de hematomas, dores de cabeça, convulsões e dor torácica. 
 
O envolvimento dos rins é frequente nas crianças com LES e é um dos principais factores determinantes para o prognóstico desta doença, a longo prazo.
Os sintomas mais comuns de envolvimento renal são tensão arterial alta, sangue na urina e inchaço, em especial nos pés, pernas, à tarde, e das pálpebras de manhã.
 
Os sintomas podem variar muito de acordo com cada caso individual. Assim sendo, o perfil de cada criança ou a lista dos sintomas de que padece pode ser muito diferente. Todos os sintomas que anteriormente foram descritos podem ocorrer quer no início quer em qualquer altura, ao longo da doença.
 
A doença nas crianças é diferente da dos adultos?

 
Em geral, o LES nas crianças e adolescentes é semelhante ao dos adultos. No entanto, a doença modifica-se mais rapidamente nas crianças e, em geral, em relação aos adultos parece mais grave, com maior frequência de envolvimento renal e do sistema nervoso central. Os cuidados na abordagem do LES nas crianças e adolescentes também diferem em alguns aspectos, pelo impacto que a doença pode ter no crescimento e desenvolvimento.
 
Como é feito o diagnóstico?

 
O diagnóstico de LES é efectuado com base numa combinação de sintomas (tais como a dor), sinais (tais como a febre, inflamação das articulações, lesões na pele, entre outros), resultados de exames e após outras doenças terem sido excluídas. 
 
Para ajudar a distinguir o LES de outras doenças, foram estabelecidos critérios clínicos e imunológicos que, quando em conjunto, permitem classificar o doente como tendo LES.
Estes critérios representam algumas das manifestações mais comuns que podem ser observados nesta doença:
 
Critérios clínicos:
 
1.Lupus cutâneo agudo: rash malar (erupção cutânea em «asas de borboleta» que é uma erupção cutânea vermelha que ocorre sobre a face e nariz), lúpus bulhoso, lúpus máculo-papular, rash de fotossensibilidade (é uma reacção dermatológica excessiva à luz solar), lúpus cutâneo subagudo.
2.Lupus cutâneo crónico: lúpus discóide (é uma erupção cutânea escamosa, em forma de moeda que surge na face, no couro cabeludo, nas orelhas, no peito e nos braços. Quando estas lesões curam pode ficar uma cicatriz), lúpus hipertrófico, paniculite lúpica, lúpus eritematoso túmido, eritema pernio do lúpus e lúpus discoide em sobreposição com lichen planus.
3.Úlceras orais: cavidade (incluindo o “céu da boca”) oral e nasal (pequenas feridas – de tipo afta - que ocorrem na boca e no nariz).
4.Alopécia não cicatricial
5.Artrite envolvendo 2 ou mais articulações, caracterizadas por tumefação ou dor em 2 ou mais articulações e rigidez matinal superior a trinta minutos. 
6.Serosite: dor pleurítica (tipo esp
ecial de dor torácica que piora com a respiração e que traduz inflamação da pleura, o revestimento dos pulmões) por mais de um dia, derrame pleural ou atrito pleural, dor pericárdica (por  inflamação do pericárdio, o revestimento do coração) por mais de um dia, derrame pericárdico, ou atrito pericárdico ou alterações compatíveis com pericardite no ECG. 
7.Renal: proteinúria ≥ 500mg nas 24h ou cilindrúria (o envolvimento renal encontra-se presente em aproximadamente todas as crianças com lúpus e varia entre o muito ligeiro a muito grave. No início, em geral, não tem sintomas e pode ser detectado apenas em análises de urina e análises clínicas à função renal).
8.Neurológico: convulsões, psicose, mononevrite múltipla, mielite, neuropatia periférica ou dos pares cranianos, estado confusional agudo 
9.Anemia hemolítica (processo de destruição das glóbulos vermelhos).

10. Leucopenia (decréscimo dos glóbulos brancos < 4000/mm3 em pelo menos uma determinação)  ou linfopenia (decréscimo de um tipo de glóbulos brancos chamados linfócitos <1000/mm3 em pelo menos uma determinação).
11.Trombocitopenia
(decréscimo da contagem de plaquetas < 100 000/mm3 em pelo menos uma determinação).
 
Critérios imunológicos.
 
1.ANA (auto-anticorpos que atacam o núcleo das células) acima dos valores laboratoriais de referência.
2.Anti DNAds (auto-anticorpos que atacam o material genético da célula) acima dos valores laboratoriais de referência; por ELISA duas vezes acima dos valores laboratoriais de referência.
3.Anti-Sm (referem-se ao nome do primeiro doente em cujo sangue foram encontrados - o apelido da doente era Smith. Estes auto-anticorpos existem quase exclusivamente no LES, ajudando com frequência a confirmar o diagnóstico)
4.Anticorpos antifosfolípidos (auto-anticorpos que agem contra os fosfolípidos que fazem parte da membrana celular, do próprio corpo ou proteínas que ligam o fosfolípidos): anticoagulante lúpico, RPR falso positivo, título elevado ou médio de anticardiolipina (IgA, IgG, IgM) ou anti beta2 glicoproteína 1 (IgA, IgG ou IgM). Estes anticorpos aumentam a tendência para a coagulação nos vasos sanguíneos e tem sido associado a uma série de doenças, incluindo trombose das artérias e/ou veias.
5.Baixo complemento: C3, C4, CH50 (grupo de proteínas sanguíneas que destroem bactérias e regulam as respostas inflamatória e imune. Determinados complementos proteicos,  como C3 e C4, podem ser consumidos em reacções imunes e a existência de níveis baixos destas proteínas implica a presença de doença activa, em especial doença renal)
6.Teste de Coombs positivo (teste que detecta anticorpos contra glóbulos vermelhos que estão presentes livres no sangue do doente) na ausência de anemia hemolítica
 
Para a classificação de LES são necessários pelo menos quatro destes critérios, sendo um obrigatoriamente clínico e outro obrigatoriamente imunológico. O envolvimento renal associado a pelo menos um critério imunológico é suficiente para que se estabeleça a classificação.
 
Que exames complementares de diagnóstico devem ser feitos?

 
Os exames laboratoriais e imagiológicos podem ajudar a diagnosticar o LES e a decidir que órgãos internos estão afectados. É importante efetuar análises regulares ao sangue e à urina para monitorizar a atividade e gravidade da doença, assim como para determinar a tolerância que o doente tem à medicação usada para tratar o LES. 
 
Algumas análises imunológicas são importantes para determinar a presença de auto-anticorpos que são relevantes para o diagnóstico e para a monitorização da atividade da doença, como os ANA e antiDNAds, entre outros. No entanto é preciso ter cuidado na interpretação do resultado destas análises porque um resultado positivo num exame ANA, por si só, não constitui prova de LES, uma vez que o teste também pode ser positivo em doenças que não o LES e pode dar resultados positivos muito fracos em cerca de 5% das crianças saudáveis.
 
Estão atualmente disponíveis muitos outros exames que permitem avaliar os efeitos do LES, nomeadamente ao nível dos órgãos. Se há suspeita de envolvimento renal efetua-se frequentemente uma biópsia (a remoção de um pequeno pedaço de tecido) do rim. Uma biopsia renal fornece informação valiosa quanto ao tipo das lesões provocadas pelo LES, sendo muito útil na escolha do tratamento correto. Uma biópsia cutânea também pode ser importante ao ajudar a perceber a natureza de diversas erupções cutâneas no contexto do LES. Entre os outros exames disponíveis incluem-se os raios-x torácicos (ao coração e aos pulmões), ecocardiogramas, provas de função respiratória, electroencefalogramas (EEG), ressonâncias magnéticas (RM) ou outros exames ao cérebro.
 
Qual o tratamento?
 
Para a grande maioria das crianças com LES, o tratamento minimiza/resolve os sintomas, reduz a inflamação e ajuda a restabelecer as funções do organismo que possam estar comprometidas. 
 
Os medicamentos que no doente com LES atuam na modulação do sistema imunitário incluem:
•corticosteróides
•antimaláricos
•imunossupressores, em especial a azatioprina, metotrexato, ciclofosfamida, micofenolato de mofetil
•terapêutica biotecnológica
 
Os corticosteróides como a prednisolona são utilizados para reduzir a inflamação e para suprimir a atividade do sistema imunitário. Em geral, o controlo inicial da doença não pode ser alcançado sem a administração diária de corticosteróides por um período de várias semanas ou meses, requerendo a maioria das crianças a manutenção destes medicamentos durante muitos anos. A dose inicial de corticosteróides e a frequência da sua administração dependem da gravidade da doença e dos órgãos afetados.
 
Embora não exista qualquer relação conhecida entre o LES e a malária, os medicamentos anti-malários como a hidroxicloroquina são muito úteis no tratamento das manifestações cutâneas do LES e como adjuvantes dos corticosteróides na doença sistémica.
Quando existe envolvimento de um órgão major ou quando os corticosteróides e a hidroxicloroquina não são suficientes para controlar a atividade da doença, ou o são apenas à custa de doses elevadas de corticosteróides, é necessária a associação de um imunossupressor. A escolha deste vai depender do tipo de envolvimento do LES e da ponderação entre os benefícios e os riscos específicos para cada doente.
 
Quando a doença é refratária a todas estas medidas e permanece ativa apesar do tratamento adequado com imunossupressores, existem dois agentes de terapêutica biotecnológica que podem ter indicação: 
- Rituximab, um anticorpo monoclonal que depleta células B CD20+ que não está formalmente aprovado para o tratamento do LES mas que inúmeros relatos na literatura documentam a sua eficácia em casos selecionados. O uso do Rituximab é particularmente útil nos casos de envolvimento hematológico e renal. 
- Belimumab, um anticorpo monoclonal dirigido contra o BlyS (fator de sobrevivência das células B) que bloqueia a sua ligação aos recetores nas células B e que está indicado para o tratamento do LES refratário.
 
A necessidade  de administração contínua de certos medicamentos, nomeadamente dos corticosteróides, pode causar complicações adicionais, que devem ser minimizados através de uma gestão cuidada da terapêutica, só possível com um acompanhamento médico adequado e regular. 
 
Para além de todas estas opções terapêuticas algumas medidas poderão ainda reduzir o risco de “crises” da doença. Uma medida fundamental para todos os doentes com LES é o uso dos fotoprotetores cutâneos que devem ser aplicados diariamente em todas as áreas expostas à luz solar.
 
Qual o prognóstico?
 
De uma forma geral o prognóstico do LES tem melhorado ao longo dos anos, contribuindo para esta melhoria o diagnóstico mais precoce da doença, o conhecimento das várias formas clínicas do LES, permitindo um tratamento mais seletivo, avanços no  tratamento e as abordagens terapêuticas mais agressivas dos fatores de risco cardiovascular e das infeções. No entanto, apesar o prognóstico do LES juvenil continua a ser muito variável e relativamente imprevisível dependendo principalmente da gravidade do envolvimento de órgãos major. 
 
Conclusão
 
O LES juvenil é uma doença semelhante ao LES que se inicia em idade adulta, com a diferença de que a maior frequência de envolvimento de órgão major implica o recurso mais frequente a esquemas “agressivos” de imunossupressão, de forma a obter um controlo rápido e adequado da doença e a minimizar o impacto negativo no desenvolvimento físico e psicossocial da criança ou adolescente.
O espectro desta doença engloba vários subgrupos de doentes com prognósticos diferentes que importa individualizar com o objectivo de obter a terapêutica mais eficaz possível e com o mínimo de efeitos adversos.
 
 
 
Filipa Oliveira Ramos
Médica Reumatologista do Serviço de Reumatologia do Hospital de Santa Maria, CHLN.
Membro da Direção da A.N.D.A.I.

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